top of page
lichen-1584987_1920-1170x650.jpg

HOLOBIONTE
de Costanza Givone

Descobri recentemente esta palavra que parece descrever um ser de ficção científica, um extraterrestre enorme, viscoso, com tentáculos, que rasteja solitário na superfície de Marte.

Holobionte é um organismo que hospeda muitos outros organismos, um ser plural onde o todo é mais do que a somatória das partes, graças às relações que se criam entre eles. 

Quando Lynn Margulis, bióloga norte americana, apresentou esta palavra no contexto da sua teoria endossimbiótica (uma teoria de evolução da espécie que complementa a darwinista e acrescenta a possibilidade de evolução através da cooperação) não estava a falar de nenhum ser extraordinário, mas de inúmeros organismos terrestres, incluindo o ser humano. 

Parece que a cooperação está estritamente correlacionada com a evolução, mas foi só 60 anos atrás que a comunidade científica tomou realmente a sério a possibilidade de pôr em questão o Darwinismo e acrescentar a cooperação (além da competição Darwinista, tão útil a justificar o capitalismo) entre os mecanismos de sobrevivência e evolução dos seres vivos. Parece que, se de um lado, o individualismo continua a ser fortemente incentivado pela sociedade capitalista, alienando cada vez mais os indivíduos e colocando-os em bolhas cada vez mais restritas e estanques; por outro lado, existe um movimento transdisciplinar que, desde a ciência até a filosofia, propõe-se demonstrar a importância da cooperação e de rebater a ideia de indivíduo como ser único.

Voltamos à ciência, Scott Gilbert, biólogo, afirma que somos todos liquens. Estão a ver aquelas pequenas plantinhas farfalhudas, fruto do encontro entre algas e fungos, que nascem em cima dos troncos das árvores? É isso, os liquens não são tão distantes de nós como podemos achar. Os liquens são organismos simbióticos, ou seja, organismos que garantem a sua sobrevivência através de um acordo de cooperação. Gilbert demonstra que o ser humano é também um ser simbiótico, analisando e questionando, com base nos seus conhecimentos científicos, todas as definições de indivíduo: anatômica, fisiológica, genética, do desenvolvimento.

Não vou repetir aqui todas as provas, encontradas no mundo animal e no nosso próprio corpo, que utilizou para demonstrar a sua teoria, mas vou referir que só no nosso intestino vivem mais de 1000 grupos de bactérias de 150 diferentes espécies, e que no próprio leite materno são produzidos hidratos que não podem ser utilizados diretamente pelo bebé mas que servem para nutrir os bífidos, bactérias fundamentais para a digestão, que colonizam o nosso intestino desde a nascença (passando da mãe ao filho a quando da ruptura da placenta).

Recentemente fui mãe e esta fase da vida torna ainda mais tangível a sensação do nosso corpo ser Oikos, casa, um espaço que habitamos juntamente com outros organismos. Não há propriedade privada nesse corpo que achávamos nosso e que, quando temos um filho, parece não nos pertencer completamente. No princípio não é uma sensação agradável, até compreendermos que dessa maneira nos tornamos infinitos, parte de uma rede de conexões que nos liga ao passado e ao futuro, a todos os seres, plantas e animais, com os quais partilhamos a necessidade primária de cuidar do outro. Aceitamos o fracasso da razão e nos rendemos ao instinto, que partilhamos com os restantes animais.  

Sempre que falo de conexões tenho vontade de voltar ao ponto de partida, ao micélio, que subterraneamente conecta as plantas. Se o micélio é uma metáfora para as relações humanas, somos induzidos a imaginar que as árvores são os humanos e a rede de micélio são as relações. Deleuze e Guattari porém, no seu texto sobre rizomas, problematizam esta metáfora da árvore. Segundo eles, a lógica binária árvore-raiz reproduz uma estrutura hierárquica e patriarcal. Afirmam “muita gente tem uma árvore plantada na cabeça mas o próprio cérebro é mais erva daninha do que uma arvore”.

Deleuze e Guattari alertam-nos para o risco de reproduzir um sistema hierárquico altamente centralizado, apesar de estarmos a refletir sobre coletividade:

 

  A árvore ou a raiz inspiram uma triste imagem do pensamento que não cessa de imitar o múltiplo a partir de uma unidade superior, centro ou segmento (...)

 Quando se acredita chegar a uma multiplicidade, pode acontecer que essa multiplicidade seja falsa - o que chamamos de tipo “raizinha”- porque a sua apresentação ou afirmação aparentemente não hierárquica só admite, de facto, uma solução totalmente hierárquica. 

Deleuze e Guattari propõem a imagem do rizoma, regida pelos seguintes princípios: princípio de conexão e de heterogeneidade (qualquer ponto de um rizoma pode estar em conexão com qualquer outro), princípio de multiplicidade (não há nenhuma relação com a unidade), princípio de ruptura significante (um rizoma pode ser partido num ponto qualquer sem ser comprometida a sua sobrevivência), princípio de cartografia e decalcomania (um rizoma não está sujeito à jurisdição de um modelo estrutural). A imagem do rizoma é muito interessante como ponto de partida para a nossa reflexão sobre o micélio. O micélio tem características em comum com o rizoma, mas tem uma diferença substancial: a relação com a metáfora da árvore. 

A árvore já não é símbolo de uma estrutura hierárquica, mas parte de uma rede de cooperação. Interessa-me a imagem da árvore porque, na sua relação com o micélio, sugere um sistema de cooperação entre individualidades múltiplas e não o total desaparecimento da ideia de indivíduo. Além disso, as árvores podem ser vistas como exemplo de estruturas não centralizadas. Stefano Mancuso, biólogo, explica este conceito comparando os mecanismos de sobrevivência das plantas e dos animais. Segundo ele, um dos pontos de força das plantas, que as torna capazes de sobreviver a situações extremas, é precisamente a falta de centralização, ou seja, a capacidade de distribuir as suas funções vitais pelo corpo todo, em lugar de concentrá-las em órgãos específicos. As árvores não têm órgãos e por isso são mais resilientes e capazes de adaptar-se. Além disso, as árvores criam relações de simbiose com o micélio (um organismo autônomo e independente. A árvore é uma estrutura que opera em cooperação com um ecossistema complexo, na qual é inserido e cria ligações simbióticas.  

No entanto, aproximo-me de Deleuze e Guattari quando comentam que o nosso cérebro é erva daninha e referem um texto lindíssimo do Hamlet de Henry Miller: 

 

 De todas as existências imaginárias que emprestamos às plantas, aos animais e às estrelas, talvez seja a erva daninha que leva a vida mais sábia. É verdade que a erva daninha não produz nem flores, nem porta-aviões, nem fala de montanha [...]. A erva só existe entre os grandes espaços não cultivados. Ela preenche os espaços vazios. Cresce no meio e entre outras coisas. A flor é bonita, a couve é útil, a papoila deixa-nos loucos. Mas a erva está a transbordar, é uma lição de moral.

 

Assim como a erva daninha, o nosso cérebro pode expandir-se, preencher os vazios, sem produzir nada de específico, cria ligações. 

O indivíduo não é tão sozinho como parece, nem estanque. Somos holobiontes, organismos que vivem em simbiose com outros, os hospedam, e disso tiram proveito. A partir dessa nova consciência podemos treinar a nossa pluralidade e procurar caminhos para criar conexões sempre novas. Os holobiontes são casas, têm uma estrutura, mas é plural, têm portas e janelas a partir das quais encontram mais seres plurais e únicos.  “As diferenças não contrapõem, mas ligam” segundo a definição de Glissant. 

Como gerar esta ligação que nasce na diferença?

As micorrizas são uma boa metáfora, a fusão entre micélio e raiz gera uma relação de simbiose, esta relação pode assumir várias formas, e, se por vezes não beneficia diretamente as partes envolvidas, será útil para a preservação do ecossistema. Por exemplo, por vezes o micélio transporta elementos nutritivos de plantas mais velhas e fortes para plantas mais jovens, isto não tem uma vantagem direta para a planta mais velha mas, a longo termo, garante a sobrevivência da espécie. 

Sugiro-nos treinar este pensamento de micélio, um pensamento lento que se estende para além da nossa vida, para além do nosso interesse imediato. 

E na prática?

Como aplicarmos estas metáforas às práticas de criação?

Vou dar o nome de "prática miceliar" às práticas que têm a capacidade de criar ligações subterrâneas entre pessoas e pessoas, pessoas e animais, pessoas e ambiente, plantas, ou entre disciplinas. Dividi estas práticas em quatro fases, das quais a última é a manifestação das práticas:

 

1) Apanha de cogumelos 

Os cogumelos, frutos do micélio e seu sistema reprodutor, aparecem aos nossos pés revelando um mundo subterrâneo esquecido. A prática de “apanhar cogumelos", de um ponto de vista metafórico, é a primeira fase do conhecimento de um lugar, uma fase de reflexão mais íntima onde o foco é o que está escondido, é um momento solitário ou coletivo, onde estamos juntos num estado de escuta e observação.

2) Criar hifas

As práticas que proponho têm uma progressão dialéctica de observação e ação, de intimidade e partilha. A criação de hifas (os filamentos dos quais é composto o micélio) é a fase em que o micélio se expande na terra e começa a conhecer as características do solo. A observação torna-se mais ativa e prepara a fase de ação; é uma observação tátil e sensorial do ambiente e dos seres vivos que o habitam. As hifas, ao contrário das raízes, têm um movimento dinâmico, não prendem algo mas conectam. 

 

3) Micorriza

A micorriza (do grego mykes: cogumelo, rhiza: raiz) é a associação simbiótica entre uma planta verde e um fungo. É a fase de encontro entre duas identidades diferentes, que, por um lado, reconhecem as suas diferenças e a importância dessas diferenças para sobreviverem, por outro, iniciam uma associação mutualista em que o limite do seu corpo se expande no corpo do outro. Como prática, é uma das fases mais desafiantes, porque exige uma grande mudança na nossa forma de pensar. Este encontro precisa de tempo e de cuidados ao longo do tempo. Este é o tempo das plantas, ao contrário do tempo dos animais. É o tempo da troca de informações e de nutrientes. É a prática de criar um espaço e uma situação onde ninguém é o líder e todos são responsáveis pela manifestação deste encontro.

 

4) O nascimento dos cogumelos 

O cogumelo é a manifestação da vida subterrânea. Pode ser envenenado, bom para comer ou alucinógeno. Não é um produto final, mas uma manifestação do caminho e dos encontros que aconteceram no subsolo. Partilhamos os cogumelos para expandir a nossa rede.

 

O crochet coral reef é um exemplo muito interessante de prática e manifestação miceliar.

Tudo começa quando, no final dos anos 90, a matemática Daina Tamina, descobre uma maneira de representar fisicamente os planos hiperbólicos (planos com uma curva que não é positiva como uma bola nem nula como uma mesa, mas negativa).

Até a data, era considerado um conceito abstracto, impossível de ser representado, apesar de, os planos hiperbólicos, encontrar-se com frequencia na natureza, vejam as folhas de alface, alguns moluscos e corais. A cientista encontrou a solução no crochet, adicionando para cada linha um número constante de pontos. Uma relação íntima com a prática artesanal do crochê, levou-a a ver o que mais ninguém tinha visto até a data e assim começou a criar planos hiperbólicos. A prática de criar planos hiperbólicos em crochet começou a difundir-se, primeiro entre os seus estudantes, depois em revistas de divulgação científica. Este movimento de expansão e comunicação levou ao encontro de Daina com as gêmeas Margaret e Christine Wertheim (a primeira cientista e a segunda artista), criadoras do Institute for Figuring, para promover “as dimensões poéticas e estéticas da ciência, matemáticas e das artes técnicas”. Vejo este encontro como uma associação simbiótica ou micorriza: em colaboração com Daina, as gêmeas Wertheim começaram um projeto que abrange a arte, a divulgação científica, e o ambientalismo. Criaram uma barreira coralina em crochet, a partir de materiais de descarte. Este encontro produziu um efeito de expansão em rede deslumbrante, inúmeras mulheres juntaram-se na criação da barreira coralina que se tornou uma atividade a escala global. O facto de utilizarem o crochet, criou um entendimento comum que permitiu que este projeto, nascido num grupo restrito de pessoas, se espalhasse rapidamente. Graças às inúmeras contribuições, a instalação tornou-se cada vez mais impactante, não só pelo seu efeito visual mas pela sua capacidade de transportar a sua mensagem à volta do mundo, de maneira única e participada. O projeto assumiu vida própria, cresceu e tornou-se algo maior do que a somatória das partes.  Vejam aqui o site do projeto https://crochetcoralreef.org/.

Nas práticas miceliares, é importante encontrar um território comum para favorecer o florescer da rede, ou seja, a prática é tanto mais eficaz quanto mais capaz de ir ao encontro das pessoas. Para que isto aconteça, o ponto de partida são ações simples e cotidianas: caminhar, cozinhar, fazer crochet, plantar, cantar…

A partir de aí, a unicidade de cada holobionte transformará e expandirá estas ações.

As manifestações das práticas miceliares são imprevisíveis e surpreendentes, porque nascem de uma pluralidade de encontros entre seres plurais.

Isto é entusiasmante.

 

Bibliografia

 

Stefano Mancuso: Plant revolution, (2017)

Edouard Glissant: Poetique de la relation, (1990)

Gilles Deleuze e Felix Guattari: Mille Plateaux (1980)

Donna Haraway: Staying with the trouble: making kin in the Chthlucene (2016)

Scott F. Gilbert, Jan Sapp and Alfred I. Tauber: A Symbiotic View of Life: We Have Never Been Individuals (2013)

 

Videografia

https://www.pbs.org/video/university-place-we-are-all-lichens/

https://www.ted.com/talks/margaret_wertheim_the_beautiful_math_of_coral

bottom of page